Entre Ilhas — Personagens

FLORES
João António Gomes Vieira

João António Gomes Vieira, chamado pelos amigos de marinheiro desembarcado, foi escritor e poeta. Profundo conhecedor do mar destas ilhas e eterno apaixonado pela sua ilha, as Flores, diz que se lembra de ouvir nos vapores o andamento Allegro da Sinfonia n.º 42 de Mozart. Quando ouvia tocar a música, conseguia ver a luz a sair atrás do Pico ou a cair por trás de São Jorge.

“Aqui há a parte emocional e a parte social. De barco demorávamos 12 dias daqui para Lisboa, e quando entramos a bordo do navio há uma aproximação muito grande, a gente descontrai-se, o mar faz-nos voltar à nossa origem, porque todos nós fomos criados dentro de uma bolsa de água salgada.”
CORVO
Lino de Freitas Fraga

Lino de Freitas Fraga é um corvino que trabalhou durante anos no posto meteorológico da ilha. Lembra-se do tempo em que só havia a estação dos correios, que recebia e transmitia duas vezes por dia telegramas por morse. Chegavam a estar três meses sem barcos nem comunicação com o exterior e diz que não lhes faltava nada. Hoje, afirma que está tudo dependente do que vem de fora.

“Eu tive só um filho porque tinha medo. A minha mulher passou a gravidez de inverno, e o vento passava por aqui a cento e tal quilómetros, e eu pensava: se há algum azar, alguma complicação, ela vai morrer. Porque não havia hipótese nenhuma, nessa altura não havia aviões nem helicópteros e o mar no inverno era muito difícil de navegar.”
PICO
Francisco Andrade de Medeiros

Francisco Andrade de Medeiros, mais conhecido por Xatinha, dedicou a sua vida aos barcos como cabo do mar nas Lajes das Flores e em São Roque do Pico.

“Eu lembro-me de uma história do ilhéu frente ao Topo, em São Jorge. Tinham lá um boi que era para matar pelas festas do Espírito Santo, e eles na véspera eram para ir buscar o animal de lanchinha, mas estava muito mau tempo e eles não conseguiram atravessar o mar. Iam buscá-lo noutro dia de manha, mas quando iam sair perceberam que o boi já estava no Topo, veio a nadar e as pessoas admiraram-se muito, acharam que tinha sido mesmo o Espírito Santo
Tomás Vieira

Tomás Vieira é um florentino que há muitos anos trocou a sua ilha pelo Pico. Acha que agora estamos mais isolados do que antes?

“Humanamente sim. As pessoas não conversam, não convivem, não trocam impressões, nada. E isto é muito mau. Antigamente havia um isolamento, mas havia mais convívio, as pessoas comunicavam-se mais, depois chegaram as televisões, e os vídeos, e as pessoas começaram-se a fechar em casa e começou a haver aquela falta de entrosamento social. Havia os clubes, as pessoas iam jogar as cartas o ping-pong, ou mesmo só conversar, hoje cada casa é um castelo. Cada família fecha-se lá dentro e não precisa de contar com as outras pessoas.”
SÃO JORGE
Luís Nemésio Pereira Serpa

Luís Nemésio Pereira Serpa é um picaroto nascido na Prainha do Norte. Sábio professor, vive na Calheta, na ilha vizinha de São Jorge, onde foi presidente da Câmara.

“Naquele tempo o mar era a realidade, hoje o mar é um acto fictício. As pessoas vão brincar, vão nadar, vão pescar, mas o mar não tem hoje a finalidade que tinha antigamente. Naquele tempo era uma estrada, o único meio de ligação”
João Soares Silveira e José Ferreira Sabino

João Soares Silveira e José Ferreira Sabino foram bagageiros e estivadores dos barcos. Recordam o tremor de terra de 1964, e os barcos estrangeiros que os evacuaram para a Terceira.

“Quando houve aqui um tremor de terra em 1964, o Girão veio da Terceira com 5 mil e tal pães dentro do porão, para descarregar na Calheta. Ficou tudo deserto e os animais à solta: eram galinhas e vacas, tudo solto na rua. Fugimos todos das Velas e fomos todos para a Calheta, e vieram barcos estrangeiros para nos evacuarem para a Terceira.”
GRACIOSA
Mercês Coelho

Mercês Coelho é uma graciosense. A memória que desde sempre a comove é a de uma viagem para passar o natal com a família, quando tinha 11 anos, no vapor Carvalho Araújo.

“Foi uma viagem terrível a partir da Ponta dos Rosais, de São Jorge, quando o barco virou aquela esquina, tudo a bordo começou a dançar, e às tantas as cadeiras rolavam de um lado para o outro, e quando começámos a sentir a sombra tutelar da Graciosa, veio um marinheiro dizer: olhem meninas, os portos estão impraticáveis na Graciosa e não podemos fazer serviço, vamos para a Terceira. E com esta notícia realmente nós ficamos desgostosas, chorámos muito e eu acho que o comandante se comoveu com aquelas crianças que iam ficar mais uma semana sem ver a família, e decidiu arriscar e desembarcou-nos na lancha da alfândega. Fomos recebidas no cais como se fossemos heroínas e no fundo devemos essa viagem ao comandante do navio que sobre máquinas nos fez desembarcar”.
Fernando Silva

Fernando Silva, nascido na Graciosa, foi marinheiro durante anos a bordo do vapor Carvalho Araújo. Guarda na memória as dificuldades que muitos passavam e ajuda que dava sempre que podia.

“Havia alguns que iam sem camarote e a gente ajudava com uns cobertores, ou às vezes havia passageiros que não saiam para comer durante uns dias por causa dos enjoos e a gente ia para os camarotes para levar alguma coisa de comida. Eu tenho uma prima minha que foi da Terceira para as Flores e nunca saiu do camarote para fora, sofreu muito.”
TERCEIRA
Francisco Fisher

Francisco Fisher, terceirense, é um dos últimos comandantes dos iates do Pico Espírito Santo e Terra Alta, míticos navios da ligação entre ilhas.

“Quando eu morrer, ele vai comigo no coração. Amigo é pouco, aquele iate era a minha alma, mas tudo se acaba, nada é eterno, é a vida. Hoje o Terra Alta está no cemitério, e a gente se olhar para o mar não vê passar ninguém, é o horizonte enquanto a vista alcança.”
António Benito Barcelos

António Benito Barcelos, terceirense que durante anos viajou para a Graciosa como subdelegado dos desportos. Considera que não haverá certamente nenhuma família açoriana do século passado que não tenha uma história para contar do navio Ponta Delgada. Lembra-se que tinha um cheiro muito agradável do ananás vindo de São Miguel que se servia de sobremesa.

“Há uma célebre viagem que não posso esquecer, no inverno de 1975, em que saímos daqui às 2 da manhã e só conseguimos desembarcar passageiros às 2 da tarde na Graciosa, doze horas depois. Não houve pequeno almoço, não houve almoço, toda a bagagem e carga do navio desapareceu no mar, e nessa viagem muitos precisaram de ajuda para poder descer as escadas no porto, iam todos brancos”
SANTA MARIA
Ângelo Resendes Andrade

Ângelo Andrade, guarda-fios da ilha de Santa Maria, revê as suas memórias do tempo em que as comunicações na ilha de Santa Maria seguiam outros ritmos e frequências.

“Naquele tempo, em 1950, eu tinha um filho em Coimbra, e sabe como eram as comunicações? Uma cartinha de quando em quando, porque isto evolui de uma maneira. Agora a minha filha fala com a neta todos os dias. As comunicações hoje são muito fáceis, eu sou do tempo de dois carros em toda a ilha e um barco de 15 em 15 dias”
SÃO MIGUEL
Armando Soares Cordeiro Júnior

Armando Soares Cordeiro Júnior é filho do lendário comandante do navio Ponta Delgada e lembra a conversa que este teve com o engenheiro Rogério de Oliveira, responsável pela construção do navio.

“O meu pai discutiu com ele e disse: este navio vai adornar, se você não meter mais linha de água, este navio vai virar numa contrariedade qualquer. E o outro riu-se: está a brincar comigo, eu já pus no mar vários navios com esta teoria… E o meu pai disse: mas este navio nos Açores vai virar de pernas para o ar. Não é para o mar dos Açores, isso é paro o rio Tejo, é para o Douro. Eu vou para o meio do Atlântico, vou para a rota das baleias, vou para uns sítios complicados onde se fazem as histórias do Moby Dick. Onde há tempestades a sério, onde há um anticiclone que comanda os bons tempos e maus tempos na Europa.”
José Machado da Luz

José Machado da Luz, um dos últimos caixeiros viajantes da ilha de São Miguel, partilha as suas memórias das dificuldades que esta profissão acarretava e dos desembarques e embarques tormentosos que viveu.

“Os caixeiros viajantes passavam mal. Estávamos sempre longe da família, e havia dificuldades, íamos de barco, não havia restaurantes nem hotéis como há agora, às vezes era difícil, nem a família fazia ideia de como a gente passava lá fora. Uma vez fizemos um desembarque na Calheta….não é exagero, eram autênticos milagres, havia situações que eu julgava que a lancha se afundasse, na escada de portaló estava sempre um marinheiro que nos pescava, era assim, só filmando.”