Era uma vez nove ilhas longínquas, conhecidas como Açores, às quais só se conseguia chegar depois de intermináveis viagens de barco, e das quais só era possível partir quando se perdia o medo de enfrentar a imensidão do mar. É a esse lugar –ora real, ora imaginado, que a cineasta pretende chegar quando embarca na sua peculiar viagem a bordo dos rápidos e modernos ferries que ligam hoje estas ilhas do Atlântico. No seu périplo, encontra velhas histórias de mar, folhas de diários perdidos e fotografias antigas que a hipnotizam: há horizontes repletos de barcos, comandantes e contramestres, há pianos nos salões da primeira classe, gado que viaja junto à terceira e caixeiros viajantes, há militares, muitos estudantes, alguns namoros e tantos enjoos, há nascimentos a bordo e dias de São Vapor, há tempestades e um medo terrível à morte. A cada milha navegada, o lento vagar dos antigos iates e vapores enfeitiça a imagem presente, e do movimento lento das ondas emerge esse outro mundo sensorial em que não há aviões lowcost nem pressa para nada. “Entre Ilhas” sustem o fôlego para imaginar os Açores assim: ilhas centro, ilhas periferia, ilhas isoladas, ilhas cosmopolitas.
A primeira ideia deste filme nasce em 2016, numa viagem entre as ilhas de São Miguel e do Faial a bordo do navio de passageiros “Express Santorini”. Desde pequena que tenho o hábito de passar horas a observar com atenção o que se passa ao meu redor, imaginando a vida para além de tudo o que consigo ver e ouvir, e projetando um possível fora de campo. Esta longa travessia marítima era de facto perfeita para fazer aquilo que mais gosto: passeando pelo convés ou sentada nos salões do bar, estudava os detalhes dos espaços, contemplava as paisagens, observava os gestos dos corpos e ouvia as conversas dos passageiros, imaginando o resto. O Santorini lembra um love boat em decadência que navega em lentidão, transportando-nos para um ritmo antigo em que, sob o efeito da ondulação do mar, os corpos se vão relaxando e as conversas também. Turistas e locais fazem do barco a sua casa e apropriam-se deste espaço, que uma vez foi luxuoso, para o transformar num acampamento improvisado, com sacos cama e marmitas, rádios e guitarras, cartas e dominós. O barco é de facto um lugar de encontro humano, mas não só. A sua passagem pelas ilhas parece estabelecer uma coreografia que cria uma dança-espetáculo onde a insularidade se sente como em nenhum outro sítio. Quando finalmente cheguei ao Faial sabia já que este seria o meu próximo filme: o feitiço que o Santorini tinha lançado sobre mim só seria desfeito quando conseguisse contar a sua história. Os meus filmes não nascem de lugares, pessoas, ou temas que se possam escolher e planificar à priori, mas sim do deslumbramento emocional e sensorial que certos encontros me produzem. É a partir desta fascinação inicial e repentina por pessoas ou objetos e o mundo que os rodeia que parto para um estado de profunda inquietação cinematográfica, em que a câmara é ao mesmo tempo diário pessoal e caderno de campo etnográfico. É esta dupla condição da pessoa-câmara e um estado de desassossego e sobressalto que me leva a procurar incessantemente respostas e a explorar novos caminhos. De pergunta em pergunta salto do moderno Santorini para os antigos vapores e iates, e entre conversas e fotografias antigas viajo de uma realidade híper-conectada e frenética para um outro mundo antigo, lento e apaziguado. Como toda a etnografia, os meus processos cinematográficos são também lentos e morosos: foram precisos cinco anos de investigação, filmagens e pós-produção para chegar a este “Entre Ilhas”, um filme-viagem entre Madrid, Lisboa e os Açores, entre o presente e o passado e entre o real e o imaginado. Mas todo o encontro precisa do seu tempo, e o que é um filme, se não uma soma de tantos encontros?
“Entre Ilhas” é um filme-viagem sensorial pelo arquipélago dos Açores e pelas memórias dos seus habitantes que nos transporta a uma época em que os barcos comandavam a vida deste remoto lugar, pois só a bordo deles é que era possível partir da ilha e voltar a ela. Como era a vida neste recanto do Oceano Atlântico quando o mar era a única estrada possível e o apito do barco o único relógio a marcar a existência de um mundo que nunca tinha sido visto?