O Montado é um ecossistema semi-natural criado pelo homem há centenas de anos. Caracterizado pelo clima mediterrânico, a Península Ibérica é o lugar onde atinge maior expressão, ocupando um terço de toda a sua área florestal (56% em Portugal e 44% em Espanha). Equiparado à Amazónia, à savana africana, aos Andes ou ao Bornéu, o montado é hoje um dos 35 santuários mundiais da biodiversidade, oferecendo abrigo e alimento a mais de 160 espécies de aves, 24 espécies de répteis e anfíbios, 37 espécies de mamíferos, algumas das quais em elevado risco de extinção como o lince ibérico ou a águia-imperial, e ainda a muitas outras espécies vegetais. Por tudo isto, estes extensos bosques de sobreiros e azinheiras representam um dos símbolos mais importantes do nosso país, trazendo-lhe inúmeros benefícios.
A nível ambiental, o montado cumpre funções importantíssimas: fixa até 14 milhões de toneladas de CO2 por ano, combate o aquecimento global e a desertificação, controla a erosão e regula o ciclo hidrológico. Do ponto de visto económico, ele garante um rendimento de mais de 900 milhões de euros por ano ao nosso país, servindo de suporte à indústria da cortiça mas também a outras actividades de valor cultural incomensurável que caracterizam a identidade regional: o pastoreio, a recolha de frutos para alimentação animal, as culturas agrícolas, as actividades cinegéticas. Tendo nascido graças à intervenção do homem para efeitos de defesa e aproveitamento de recursos, a utilização informada e responsável desta paisagem cultural continua a ser indispensável para a sua preservação e sustentabilidade.
Num dos bosques mais antigos da Europa, têm subsistido, ao longo de milhões de anos, muitas espécies vegetais de origem arcaica.
Sobre estas árvores, três grandes águias que acabam de chegar de uma épica travessia iniciada em África, vigiam o solo em busca de répteis e serpentes, até que finalmente mergulham a grande velocidade, atacando violentamente as suas presas.
Mas ao lado desta espécie africana voam também as águias-imperiais-ibéricas, espécie endémica da nossa fauna e em vias de extinção, o que faz dela uma das aves mais raras do mundo. Quando a sua sombra se projecta sobre as planícies do montado, todos os seus habitantes estremecem, sobretudo os coelhos, em cuja caça se especializaram.
Utilizamos estas ameaçadoras personagens aéreas não só para proporcionar o drama que o filme pede mas também para viajar através das diferentes paisagens que compõem este ecossistema.
Já no solo, onde desabrocham inúmeras espécies de flores, vamos descobrir um universo misterioso formado por uma multitude de plantas e de fauna invertebrada com ritos únicos, como as aranhas-caranguejo que se tornam invisíveis aos olhos das suas presas ao adoptarem a cor das plantas; as aranhas-lobo, que perseguem as presas em movimento; as aranhas-tigre que tecem teias de seda mortais; ou ainda as aranhas-religiosas, que devoram o próprio cônjuge.
Recorrendo a drones e helicópteros para capturar poderosas imagens aéreas, sobrevoaremos montados que atravessam o Alentejo, a Andaluzia, a Estremadura e Castela e Leão. A partir destas localizações, presenciaremos a chegada de novos inquilinos provenientes de países longínquos como os pombos reais, os milhafres, os abutres de cara amarela ou os abutres do Egipto, que se deixam ficar por estas paradas antes de regressarem às respectivas estâncias de reprodução, proporcionando uma azáfama maravilhosa.
É Primavera e as famílias de coelhos aparecem à entrada dos covis – sem dúvida a pedra angular desta paisagem mediterrânica porque constitui a base da cadeia alimentar de vários predadores. A sua estratégia de sobrevivência consiste em garantir a existência de muitos para conseguir a sobrevivência de apenas alguns e por isso estas famílias têm mais de nove crias a cada ninhada e reproduzem-se várias vezes por ano.
É por esta altura que se revela uma das razões mais importantes para os homens terem desbastado este terreno: todo o manto vegetal se converte numa grande extensão de pastos para o gado. Touros bravos, ovelhas, vacas andaluzas e uma série de outras espécies bovinas e suínas partilham o alimento com outros herbívoros selvagens; como os cervos, os gamos e os muflões.
Mas entre toda esta fauna vive também o mangusto africano… É um grande caçador de serpentes, cujo corpo está desenhado para se infiltrar nos arbustos e para se arrastar através do solo, mas é também um predador de coelhos. Extraordinariamente agressivo mas também muito cauteloso, é um mamífero difícil de observar, que corre sérios riscos de vida nesta sua emboscada porque vive no mesmo território que o maior felino da fauna ibérica: o lince. Qualquer mangusto que se cruze no caminho do grande gato será aniquilado e deixado ao abandono, porque o lince elimina qualquer ser vivo que compita consigo na perseguição daquele que é o seu alimento mais apreciado e quase exclusivo: o coelho.
É através desta intriga que entraremos no território do lince, para revelar a vida privada deste grande carnívoro que protagoniza certamente um dos momentos mais belos desta obra.
Apesar de não existirem assim tantos lugares onde se possam esconder, o montado também oferece abrigo a alguns dos maiores répteis da Europa: o sardão, um impressionante devorador de insectos e de pequenos vertebrados, ou a grande cobra bastarda, que se converteu numa lenda graças à sua dimensão que facilmente supera os dois metros de comprimento. Extremamente astuta, é capaz de combinar as duas técnicas de caça utilizadas pelas serpentes: a constrição, por asfixia das vítimas, e o envenenamento, por paralisação.
Com o passar dos dias as temperaturas sobem e o calor põe em perigo a sobrevivência dos seus habitantes. É então que os répteis saem de cena, ocultando-se nas profundezas do subsolo para dar início ao período de estivação.
Ao mesmo tempo, o mundo vegetal enfrenta o seu maior drama. Apesar das suas estratégias milenares para evitar a desidratação, as árvores são atacadas não só pelos escaravelhos devoradores mas também pelo seu inimigo mortal: um fungo que se encontra no subsolo e que consome as suas raízes ancestrais, impossibilitando-as de absorver alimento. Mas nas suas copas, com mais de dois metros e meio de envergadura, os abutres negros suportam o calor, protegendo-as da insolação como um chapéu de sol. Esta, que é a maior ave voadora da Europa, observa as redondezas a partir deste poleiro, em busca de cadáveres.
Ao cair do sol, o calor começa a diminuir a pouco e pouco, dando tréguas às populações do montado. É quando um novo exército de animais em luta pela vida faz a sua aparição. Os raros oásis que se encontram nas redondezas transformam-se agora em lugares de reunião para os animais selvagens.
Muitos, ávidos de água, aproximam-se para beber, mas tantos outros descobriram o local ideal para caçar. Grandes mochos, alucos e corujas substituem assim as grandes águias nos seus lugares de vigia. São elas o verdadeiro perigo da noite que, apesar da sua visão aguçada, usa a audição como principal arma de caça. Os pequenos roedores, mamíferos insectívoros, as lebres ou os coelhos são algumas das suas presas potenciais. Mesmo a grande distância conseguem localizar a sua posição exacta e, graças a uma plumagem sofisticada que lhes permite realizar um voo absolutamente silencioso, atacam as presas por via da surpresa, aparecendo-lhes à frente como se fossem fantasmas.
Já o mangusto é substituído pela fuinha. Capaz de se mover agilmente pelos ramos das árvores e através do solo, caçam tanto pássaros durante o sono como outros pequenos mamíferos que se deslocam entre as árvores ou nos pastos mais próximos.
Mas, a fauna invertebrada também se faz representar durante a noite. Caçadores implacáveis dotados de um ferrão venenoso, os escorpiões ocultam-se em lugares estratégicos e ficam à espreita de algum insecto desafortunado que se atravesse no seu caminho. Nesse momento, atiram-se sobre a presa fixando-a com as suas pinças e injecta nela o seu ferrão repetidamente, até lhe causar a morte.
Este lado mais fatídico da vida de qualquer aracnídeo, muda radicalmente quando os vemos entregues às tarefas de reprodução. Dando à luz mais de trinta crias que carregam consigo até se emanciparem, as aranhas possuem um instinto canibal que por vezes pode determinar a morte de alguns elementos da ninhada. Recorrendo a potentes teleobjectivas, filmámos a rotina destes animais incríveis, tão pouco conhecidos, procurando acrescentar à sua má reputação o seu lado mais amável.
É então que, mal despontam os primeiros raios da aurora, se começam a ouvir ruídos inéditos. Desde há centenas de anos que o homem firmou um compromisso com este território, extraindo a cada nove anos a cortiça dos sobreiros a troco de protecção contra o fogo. Com efeito, a cortiça é um material ignífugo que os sobreiros desenvolvem para se protegerem dos incêndios florestais – um recurso natural exemplificativo da exploração sustentável.
Filmámos este processo ancestral no maior montado da península, enquanto assistimos à azáfama da fauna em redor, representando o homem e a sua actividade apenas como mais um elemento que compõe esta paisagem cultural multifacetada e interdependente.
Conduzindo as suas mulas através dos vales, carregando o fardo, os homens chegam então ao chamado ‘pátio da cortiça’, onde se pesa e selecciona a matéria-prima. Depois de terminarem o seu trabalho, as mulas são levadas até ao ribeiro mais próximo para apaziguarem a sua sede. É durante esta transição que introduzimos o espectador ao pescador mais implacável da fauna ibérica: o martim-pescador. Utilizando uma câmara capaz de registar mais de 1500 imagens por segundo, filmamos as preciosas artes piscatórias desta minúscula ave que com a ajuda das suas pequenas asas é capaz de se lançar como um verdadeiro projéctil sobre a superfície da água, capturando as suas presas desprevenidas.
É desta vez, junto das cegonhas brancas e negras, que assistimos ao fenómeno migratório de regresso ao continente africano, no final da sua época de reprodução.
As nuvens aproximam-se anunciando que algo vai mudar. Em pouco tempo a chuva muda a aparência do montado e imediatamente surgem novas flores, ressuscitando as grandes extensões douradas.
Do interior do bosque, começam a ouvir-se os bramidos dos cervos preparando-se para o momento da batalha. Os maiores machos surgem das zonas mais densas do bosque para se colocarem à mostra no meio das planícies, convocando os adversários. Os machos sucedem-se assim em combates que podem chegar até à morte para consagrar um último vencedor ao qual será concedido um harém de fêmeas. Entre os derrotados encontrar-se-ão feridos, sobreviventes e ainda outros que passarão a ser alimento dos animais necrófilos.
É nesse momento que um exército de abutres desce do céu, voando em círculos por cima dos cadáveres. Emitindo uma série de sinais que alertam o grupo para a existência de alimento, as aves acumulam-se no solo em função de uma hierarquia determinada pela agressividade do mais esfomeado. Poucos minutos depois já só sobram ossos. Com efeito, os abutres desempenham um papel vital na sustentabilidade do montado. Encarregues da limpeza do campo, evitam assim o desenvolvimento de inúmeras doenças.
Por fim, levantam voo e nós levantamos voo com eles. A partir do céu contemplamos a imensidão e a variedade deste ecossistema único que é tão característico da identidade do nosso país.
Neste momento, as chuvas já pararam e as árvores começam a dar fruto. Surgem as primeiras bolotas pelas quais muitos animais estavam à espera. Mas não são apenas os animais residentes que usufruem delas. A partir do norte da Europa chegam milhares de aves em busca deste precioso alimento. É aqui no montado que várias comunidades de grous permanecem durante o inverno até receberem a chamada para a reprodução que as faz regressar mais uma vez aos seus países de origem.