Rua dos Anjos é um filme construído a partir do encontro e da criação fílmica partilhada entre duas mulheres. Nele, relatam e testemunham histórias pessoais enquanto trocam algumas técnicas dos seus respetivos ofícios: o trabalho sexual e o fílmico. Neste cenário, tornam-se ambas realizadoras e personagens.
Rua dos Anjos é a minha primeira longa-metragem assim como a da Maria.
Em 2014, atriz há mais de vinte anos e realizadora há apenas três, atuei na longa metragem “Estive em Lisboa e lembrei de Você”, do realizador português José Barahona. A personagem que representei se chamava Sheila, trabalhava em casas de alterne e prostituição. Para o processo de construção desta personagem li o livro “Alugo o meu corpo”, de Paula Lee. Com uma narrativa autobiográfica, baseada na apresentação de técnicas do ofício do trabalho sexual, o livro descreve detalhadamente o início de sua carreira, a fase da inexperiência, a relação com os clientes. A leitura de Paula Lee fez-me refletir que as atrizes, na maioria das vezes, concebem romanticamente a representação de prostitutas e strippers, raramente conseguindo algum contacto com a realidade de tais ofícios e com as que dele vivem. Grandes personagens da literatura, do teatro e do cinema continuam a contribuir para a expressão romantizada da prostituta personagem.
Esta observação despertou em mim o desejo para a conceção do filme “Rua dos Anjos”. Passei a desejar fazer um filme que tivesse como temática inaugural a troca de algumas técnicas entre dois ofícios considerados pertencentes a domínios aparentemente distantes um do outro: o trabalho sexual e o fílmico.
O primeiro passo para realizá-lo deu-se na procura pelo paradeiro de Lee. Após um ano e meio de buscas ininterruptas e frustradas, fui obrigada a desistir de tê-la como a personagem do filme. Mas primeira batalha perdida, serviu como um novo começo. Enquanto ouvia de profissionais da área do cinema que o filme era um objeto descabido e fadado ao fracasso, ia reunindo forças, determinação e coerência para ir adiante. Precisava de encontrar uma personagem para o filme, mas não só. Diante da temática baseada na permuta dos saberes entre uma trabalhadora sexual e uma realizadora, tornou-se imprescindível que a premissa do filme partisse de uma criação partilhada entre quem filma e quem se deixa filmar. Assim, precisava não apenas encontrar uma trabalhadora sexual, mas que ela estivesse disposta a trocar experiências e a responsabilizar- se por partilhar a criação do filme, realizando-o ao meu lado. Tarefa difícil que durou dois anos para chegar ao fim e que encontrou em associações de apoio a trabalhadoras e trabalhadores sexuais e aos sem abrigo uma nova perspetiva de continuidade.
Maria Roxo, uma mulher ruiva, de cabelos longos e pintados, calças de ganga, meias e luvas de renda, com um diário pesado nas mãos, despertou a minha atenção. Maria contava que tinha certeza que um dia, sua vida daria um filme, e por isso, tinha sempre em mãos um documento, um diário-livro, contando parte de sua história. Ao conhecer Maria, as minhas forças para o projeto foram reavivadas. Maria, mulher forte e terna, inteligente e corajosa, disposta a empreender o desafio de se deixar ser documentada, ao mesmo tempo que me documentava e interferia no como o filme seria feito.
Maria faleceu no inicio do processo de montagem, acrescentando uma nova camada de sentido ao filme. Por isso, as palavras de Maria não podem ser lidas nesta nota de intenções. No entanto, as reminiscências das longas conversas com ela ao longo de um ano sobre os possíveis caminhos narrativos do filme acompanharam-me até aqui.
“Rua dos Anjos” guarda, assim, a promessa de abrir um espaço para reflexão e fruição de um tipo de se fazer cinema, baseado numa criação fílmica partilhada entre quem observa e quem se deixa observar.
Renata Ferraz
Ann Arbor Film Festival, Competição de Longas-metragens, Prémio Eileen Maitland Award
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