Sombras Brancas

Fernando Vendrell, Portugal, Ficção, 114 min, 2022
Sinopse

Um escritor que não escreve.

Aos 71 anos, José Cardoso Pires sofre um acidente vascular cerebral, perdendo a capacidade de se relacionar com o mundo. Apesar de ser escritor, não reconhece as palavras e não consegue sequer articulá-las com nexo. Rodeado de vultos translúcidos com quem não é capaz de se comunicar, contempla, apático, a consternação de familiares e amigos.

A seu lado, permanece a sua mulher, Edite. Acompanhando-o na sua vida concreta, estendendo a mão como que para o escoltar através do labirinto da sua própria mente. Lugares, situações e personagens fundem-se numa mistura entre a vida real, a ficção e a sua memória, num mundo luminoso e quase sem sombras. No hemisfério direito do seu cérebro, como que vindo do “lobo da imaginação”, surgem personagens surreais e fantásticas que enviam sinais misteriosos para que Cardoso Pires se volte a encontrar.

Do outro lado, no hemisfério esquerdo, encontra-se o “lobo da realidade” onde, esperançados que ele se reconheça novamente, os familiares, médicos, pessoal hospitalar e doentes, procuram com perseverança trazê-lo para a realidade. Todos parecem desafiar o famoso autor a escrever um novo livro que narre esta sua aventura contando uma “última história”, a mais definitiva de toda a sua carreira, a da sua involuntária viagem pelo território das sombras brancas.

Este livro existe e intitula-se “De Profundis, Valsa Lenta” de José Cardoso Pires. Ao regressar ao mundo dos cérebros vivos, após dobrar o meridiano da morte, o escritor afirmou: “Isto de alguém se recomeçar assim depois de nulo, é algo que deslumbra e ultrapassa”.

Nota do realizador

Li, no momento da sua primeira edição, De Profundis – Valsa Lenta de José Cardoso Pires. É uma obra única do ponto de vista literário e humano e reparto com o escritor esta obsessão da importância da memória como evidência do humano.

A afetação das capacidades cognitivas do autor através de um AVC, localizado no lobo da linguagem e da comunicação, ficou reportada em obra literária com laivos biográficos. Ao lermos este livro, somos cúmplices de um “ato médico” que surpreende a ciência e questiona filosoficamente a existência humana, confrontando-a com o surreal.
Em 2012, perante a fragilização da memória dos meus pais, esta adaptação cinematográfica começou a tomar forma e tornou-se uma obsessão pessoal. Pareceu-me ser este um tema extraordinário para um filme.

A obra de José Cardoso Pires foi pesquisada e elencada para a escrita do argumento cinematográfico, a sua família respondeu às perguntas que tanto eu como o Rui Cardoso Martins (coargumentista) lhes fizemos, trazendo-nos outras questões e contextos para o projeto.

Filmado no pico da segunda vaga pandémica, entre Novembro e Dezembro de 2020, e montado em confinamento, este filme foi também uma experiência limite em que eu, o elenco e a equipa técnica, nos confrontámos com a fragilidade humana. Estávamos a filmar num hospital, num momento em que os serviços de saúde já não comportavam o número de doentes afetados e em que milhares de pessoas não sobreviviam. Fomos forçados a isolarmo-nos para sobreviver.

O filme surgiu também deste contexto, através desta evidência implacável. É hoje enorme a gratidão que sinto por todos os que em mim confiaram, que arriscaram e que contribuíram para o surgimento inesperado desta obra.

Agora projetado em sala de cinema, parece haver pouco a acrescentar. A sala cinema é para mim um espaço criativo solitário, onde o espectador contemporiza a sua memória com impressões e vivências inexplicáveis. Também o meu cinema plasma sensações e emoções por mim vividas e remete dúvidas e questões que procuram resposta.

Sombras Brancas assemelha-se a uma alegoria biográfica de José Cardoso Pires, mas é também um filme que reporta a experiência de ser e de viver hoje, um gesto que ambiciona a alegria.

Fotos
Trailer