O que torna o seu filme sobre a escola diferente é o fato de se focar nos professores em vez dos alunos. Os heróis de SOS – SALVEM A NOSSA ESCOLA são oito mosqueteiros! O que vos levou a decidir fazer este filme com várias camadas?
Carine May:Os professores, como um todo, são um grupo fascinante de profissionais que, até agora, estranhamente têm escapado ao olhar cinematográfico. Quando pensamos em filmes franceses sobre escolas, entre os primeiros que vêm à mente estão It All Starts Today, de Bertrand Tavernier, e To be and to have, de Nicolas Philibert. Em ambos os casos, o professor é retratado de uma forma tradicional – sozinho e omnipotente na sua sala de aula. No entanto, tendo sido professora durante quinze anos, sei o quão importante é a solidariedade em grupo para determinar a eficiência do ensino. Não pude deixar de ver o potencial narrativo nessa área. Se pensarmos sobre isso, a escola é um dos últimos lugares onde decisões tomadas por funcionários públicos, transferências e insegurança no trabalho juntam um grupo de pessoas completamente arbitrário num único ambiente de trabalho. Os professores cresceram em circunstâncias diversas e às vezes têm visões radicalmente diferentes sobre a educação e a sociedade no geral, mas precisam de se unir em prol das crianças. Achámos que num mundo onde as pessoas vivem cada vez mais isoladas umas das outras, este seria um tema interessante.
Filmaram o filme em Aubervilliers. Qual é a vossa relação com esta cidade em particular?
Hakim Zouhani:Tendo em conta que a protagonista do primeiro filme que produzimos, Rue des Cités (selecionado para o ACID no Festival de Cannes de 2011), foi a própria cidade de Aubervilliers, posso dizer que foi ela que nos apresentou ao mundo do cinema, já que. Sempre desejámos contar histórias sobre este lugar porque lhe temos um grande carinho. Os “miúdos queridos” de Aubervilliers, como escreveu Jacques Prévert, normalmente crescem juntos e ao longo da sua vida vão partilhando memórias. Ambos começámos por trabalhar com crianças em diferentes instituições de Aubervilliers. Durante dez anos, trabalhei como educador de jovens adultos no Ministério dos Serviços Infanto-Juvenis ao nível local, ensinando oficinas cinematográficas. A Carine trabalhava como professora numa escola primária em Aubervilliers e, durante mais de dez anos, em La Courneuve.
Carine May:Vimos como a cidade mudava ao longo dos anos, com muitas construções a serem feitas. Os parisienses, atraídos pelos preços imobiliários mais baixos de todos os subúrbios de Paris, gradualmente vão-se mudando para cá. No entanto, e infelizmente, essa gentrificação recente não melhorou o nosso sistema: a diversidade étnica e social é inexistente em qualquer escola pública. E, olhos ao longo da última década, a cidade tem vindo a ficar empobrecida perante os nossos olhos, criando assim uma dicotomia entre os dois mundos.
Consegue ver-se que vocês capturaram esta evolução da cidade com as suas novas casas e a nova escola.
Hakim Zouhani:Esses pontos de vista são o produto das nossas reflexões sobre os lugares e a distribuição regional das pessoas – algo que abordamos em todos os filmes que fazemos. Neste filme em particular, queríamos abordar o tema do mapeamento escolar. As autoridades dizem-nos que, ao ter uma área metropolitana mais extensa, Paris e os seus subúrbios estariam em pé de igualdade. No entanto, a chegada de classes médias altas às cidades suburbanas mais pobres (sendo Aubervilliers uma delas), muitas vezes traz políticas educacionais abertamente segregacionistas, com zonas escolares que evitam conscientemente a mistura de crianças ricas com colegas mais pobres. E isso não é apenas a nossa opinião: durante a pesquisa de lugares de rodagem, conhecemos funcionários do conselho responsáveis pelos assuntos escolares em municípios que são muitas vezes de esquerda, e até mesmo eles admitiram sem rodeios que estão a seguir as mesmas práticas que denunciamos. Esta segregação, esta recusa em ter escolas mistas, aliada à crescente ansiedade nas famílias, é exacerbada nas capitais e nos seus subúrbios. Mas, estes são fenómenos globais e são um verdadeiro desafio político.
Carine May:Todos somos afetados por isto. A nível pessoal também vemos isso: temos vários amigos que colocaram os seus filhos em colégios privados, ainda que todos tenhamos frequentado escolas públicas em Aubervilliers, e tenhamos tido professores incríveis. Além disso, toda a nossa geração reconhece os benefícios da diversidade social e étnica na escola. As pessoas não acreditam mais na meritocracia; a antiga promessa de poder aproveitar a mobilidade ascendente através de uma educação do Estado não é mais credível. E, por um bom motivo: foram feitas escolhas políticas, a profissão de professor carece de segurança e, pessoalmente, como professora, vi o sistema escolar desmoronar ao longo dos anos. Zahia, a personagem principal do nosso filme, interpretada por Rachida Brakni, personifica estas contradições. Ela está genuinamente comprometida com a sua vocação, apoia a escola até o fim, e defende a regra republicana que, para a sua geração, funcionou. E ainda assim, quando o seu próprio filho expressa o desejo de ir para um colégio privado, ela finalmente cede, deixando-o abandonar o barco. Como podemos culpá-la? Ela já faz tanto pela causa.
A nova escola representa o desejo de apenas misturar membros de diferentes grupos socioeconómicos. Acompanhamos cada etapa do processo de construção até vermos finalmente o interior da escola – uma joia arquitetónica de formas orgânicas.
Hakim Zouhani:Queríamos que fosse um local muito incomum, de forma a capturar a sua força de atração. Desde a fase da escrita do argumento que tínhamos em mente este lugar específico. É uma escola real: o seu arquiteto, Paul Le Quernec, projetou-a levando em consideração as necessidades das crianças.
O que vos fez escolher “La cour des miracles” (o pátio dos milagres) para nome do filme?
Carine May:Escolhemos este nome tendo em conta o seu duplo sentido. Temos o sentido figurativo, com todos estes professores inexperientes colocados na linha da frente contra o seu melhor julgamento e obrigados a enfrentar situações que, por vezes, desafiam a compreensão. E, também, temos o sentido literal: tudo é possível na escola de Zahia! Aqui, adultos e crianças trabalham lado a lado, os primeiros fazem o melhor que conseguem para salvar o navio de se afundar, e os últimos, são cheios de surpresas. É, portanto, literalmente, um “pátio dos milagres”, onde cada dia traz o seu próprio milagre, por menor que seja. Divertimo-nos ao desenvolver esta parábola ao redor do pátio, à medida que ao longo do filme se vai tornando mais verde e as paredes se vão movendo, e abrindo-o cada vez mais. È esta evolução que dá a Zahia a força para, apesar de tudo, continuar a lutar.
Dedicaram muito tempo e reflexão às filmagens da escola. Mesmo que tenha sido construída há muito tempo, numa selva de betão, transmite uma sensação muito acolhedora.
Carine May:Esta escola é central para a história. Precisávamos de criar um vínculo especial para que as pessoas pudessem afeiçoar-se a esta pequena ilha laranja que se destaca entre os prédios altos. Por isso, trabalhámos em estreita colaboração com o nosso diretor de fotografia, Antoine Monod, de forma a capturar a arquitetura e a vida agitada deste local. Decidimos filmar em modo panorâmico para podermos ter todos os professores com as suas interações e movimentos individuais num único take, mantendo ao mesmo tempo uma dimensão próxima da realidade e fornecendo profundidade a este bairro que, na vida real, muitas vezes é pintado com um retrato menos lisonjeiro.
A banda sonora espacial do compositor Yuksek também é bastante diferente dos clichês que vemos frequentemente associados aos subúrbios.
Carine May:Sim, uma cidade operária como Aubervilliers é ao mesmo tempo áspera e suave. Afeiçoamo-nos a ela rapidamente, mesmo com as suas cicatrizes visíveis. Gostamos muito do que Yuksek fez no programa En therapie e a sua música encaixou perfeitamente no nosso projeto. Ele foi capaz de criar uma sensação emocional complexa, uma combinação agridoce de acordo com nossa visão para este filme – uma oscilação entre a dura realidade e os momentos de pura beleza. Queríamos mostrar que, mesmo com destroços abundantes ao redor das escolas, nem tudo está perdido – há sempre esperança.
Hakim Zouhani:Além disso, a música de Yuksek proporciona um ritmo alternativo aos duelos verbais que são a parte central do filme. E acho que esse contraste torna o filme ainda mais poderoso.
Filmaram muitas cenas de “exterior” – no pátio, mas também em Seine-Saint-Denis, retratando-o quase de forma bucólica. Isso também foi um esforço deliberado para romper com a convenção?
Hakim Zouhani:Queríamos focar-nos nos adultos, já que eles estão no centro do filme. Desta forma, mantivemos as cenas na sala de aula ao mínimo para evitar isolar as nossas personagens adultas dos alunos. Por esse motivo, os professores são vistos principalmente juntos, na sala dos professores ou no pátio.
Carine May:Isso também está relacionado com a personagem da Marion, que se mudou recentemente para Seine-Saint-Denis, vinda da região de Puy-de-Dôme. Ela está muito interessada em partilhar com as crianças o que mais ama: a natureza. Quando começámos a trabalhar no argumento, fizemos com que Marion cultivasse plantas na sala de aula, tornando a escola cada vez mais verde a cada dia que passa. Quando o confinamento da COVID19 aconteceu, isto influenciou bastante a nossa escrita: decidimos abraçar o conceito de “escola ao ar livre” que foi amplamente inspirado nos países escandinavos. Com isso em mente, decidimos levar as nossas personagens para o pátio, mas também além dele: para a floresta, onde as crianças criam e aprendem num ambiente verde, mesmo que perto dos prédios altos. Essa abordagem pode parecer utópica, mas na verdade está longe disso: desde que a COVID surgiu, cada vez mais professores têm dado várias horas de aulas por semana numa floresta próxima ou numa praça, dependendo do ambiente – rural ou urbano.
Hakim Zouhani:Como mencionei anteriormente, queríamos transformar o pátio num símbolo de mudança, trabalho em equipa e transformação. Conforme a escola passa por uma transformação, os professores aproveitam-na, abrem o pátio, convidando a Natureza a entrar. Essa “ágora” evolui rapidamente, com feno e terra no betão e plantas e animais que se infiltram. A Natureza oferece uma alternativa à educação atrás de portas fechadas, permitindo que os alunos “saiam da caixa escolar clássica”, por assim dizer, e aproveitem uma experiência de aprendizagem diferente.
Esse é o aspeto ativista do filme?
Hakim Zouhani:A ecologia é, frequentemente, um marcador social e, nos círculos educacionais, é usada como um argumento a favor dos colégios privados. É o caso do método de ensino Montessori, por exemplo. No entanto, o futuro do planeta diz respeito a todas as crianças. É por isso que o nosso argumento mostra uma escola pública que tenta competir com outra escola pública, utilizando métodos geralmente usados no setor privado. Há alguns anos que estamos envolvidos no mundo do cinema e dos subúrbios, e observamos que estas duas áreas não entendem o aquecimento global da mesma forma. O tema mal existe nos subúrbios porque as pessoas estão demasiado ocupadas a tentar sobreviver para se preocuparem com o destino do mundo.
Carine May:A natureza vai além do tema da ecologia. É uma fonte básica de bem-estar para as crianças, como a Marion destaca no filme. É uma necessidade, não uma opção. Apesar da seriedade do assunto, SOS – Salvem a nossa escola é uma comédia agridoce que convida as pessoas a pensar em vez de dar palestras.
Hakim Zouhani:Sim, realmente pensámos muito sobre como tornar as situações realistas, porque quando se retrata bairros pobres no cinema, há sempre o perigo de cair num otimismo ingénuo, num miserabilismo ou numa simplificação excessiva. Mesmo que as nossas histórias sejam, muitas vezes pesadas, tentamos injetar humor: sorrir diante das situações, para nós, sempre foi uma força motriz.
Carine May:Zahia também precisava de ser agridoce! Esta personagem é um pouco como nós, um pouco como eu. Tínhamos de torná-la emocionante e ao mesmo tempo determinada – e não apenas uma heroína ativista. O mesmo vale para a personagem de Ingrid (interpretada por Léonie Simaga), que promove uma abordagem muito clássica, para não dizer conservadora, do ensino. Embora ela não seja fã das sugestões ousadas da sua jovem colega Marion, ainda é uma excelente professora.
Sobre os professores: de forma a dar-lhes vida, escolheram atores de diversos contextos.
Hakim Zouhani:Já na fase do argumento, planeámos escolher a Rachida Brakni, que a Carine tinha conhecido num concurso, e Sébastien Chassagne, que já tinha entrado numa das nossas curtas. A partir daí, formámos o grupo. Apresentámo-los uns aos outros logo no início e trabalhámos em pares: Anaïde (Rozam, nota do editor) e Disiz – os dois novatos; Sébastien e Raphaël (Quenard, nota do editor), os dois pós-adolescentes; e, por último, mas não menos importante, o par Jean-Pierre/Seïd interpretado por Gilbert Melki e Mourad Boudaoud. A amizade incomum que estas duas personagens desenvolvem carrega uma grande parte do ADN do filme. Encontros como este só acontecem em escolas públicas.
Carine May: Misturámos deliberadamente várias gerações, bem como atores com carreiras diversas, para criar a heterogeneidade que dá o charme característico às salas dos professores! Também é importante ressaltar que escolhemos trabalhar com amadores e profissionais, lado a lado, como sempre fizemos em todos os nossos filmes. Todos os pais e crianças são de Aubervilliers ou cidades próximas o que ajudou a criar um certo desequilíbrio, um elemento de surpresa e até alguma espontaneidade durante as filmagens. Também sabíamos que queríamos envolver os moradores na aventura e tê-los a contracenar no filme.
Também trouxeram duas celebridades que não são originalmente do meio do cinema: o cantor Disiz, a quem colocam numa espécie de imagem espelhada da sua própria carreira na vida real, e a romancista Faïza Guène, que é perfeita como uma mãe argelina preocupada com a educação dos seus filhos.
Carine May:Isso não foi necessariamente intencional. O papel de Fabrice não foi inicialmente escrito para Disiz, mas sim, o efeito espelhado é bastante perturbador.
Hakim Zouhani:Na verdade, essa foi a única reserva que Disiz teve sobre o papel: estava determinado a interpretar Fabrice como uma personagem distinta da sua própria pessoa na vida real. Especialmente porque Disiz não abandonou a sua carreira musical – muito pelo contrário. Sair da cena do rap e fazer exames de certificação de professor são coisas completamente diferentes!
Carine May:Dito isso, ele escreveu a música de rap que está no filme – uma peça com sonoridade do final dos anos 1990 e do início dos anos 2000. É uma pequena referência para mostrar que tudo está interligado. Adoramos isso!
Hakim Zouhani:Quanto à Sra. Nedjar, a mãe que se mudou recentemente para França “da terra natal”, mas que já entendeu o sistema escolar francês, foi um papel complicado. Inspirámo-nos nas mães do bairro Petit Bard em Montpellier. Enquanto abraçam plenamente a sua origem estrangeira, essas mulheres que usam véu, lutam para evitar que a escola dos seus filhos se torne num gueto educacional e para encorajar “crianças loiras” a fazerem parte dela. Precisávamos de encontrar alguém que pudesse fornecer um sotaque argelino subtil e de ser capaz de interpretar uma personagem vingativa sem recorrer à caricatura. Curiosamente, não foi fácil encontrar uma atriz para o papel. No final, Rachida Brakni falou-nos da Faïza, com quem já tinha feito um filme antes.
Carine May:Também não foi uma coincidência completa. Assim como Mourad Boudaoud, que interpreta Seïd, Faïza cresceu nos projetos da Cité des Courtillières em Pantin, que faz fronteira com Aubervilliers.
O resultado no final do filme não é claro: não temos a certeza se houve um milagre ou não. Cada espectador pode tirar as suas próprias conclusões. Como veem isso?
Hakim Zouhani:Não há dúvida de que, em relação ao objetivo inicial, nenhum milagre ocorre, uma vez que os recém-chegados – boémios e parisienses – não conseguem matricular os seus filhos na escola.
Carine May: Mas, a vida continua independentemente desses fracassos: as pessoas reúnem-se (como amigos ou amantes); e alguns desses casais são bastante improváveis, como no caso do romance que surge entre Fabrice e Marion e a amizade entre Jean-Pierre e Seïd. Isso é o que o ensino nos subúrbios parisienses é, com pessoas de vinte anos que aparecem de toda a França sem raízes ou pontos de referência. Pode ser um choque cultural no início, mas também é uma oportunidade para fazer encontros que provavelmente não aconteceriam em nenhum outro lugar. E, por vezes, isso muda uma vida para sempre.